uma alma torturada é uma alma torturada e deve procurar funcionalidade em sua tortura, a não ser que melhore.
li isso em uma revista
de 2001, hoje, nessa noite de domingo.
faz algum tempo que eu não escrevo textos intitulados por datas da mesma forma como antes — isso comprova um dos meus maiores fracassos pessoais.
estive delirando com meus fracassos. delírios tão ruins que adoeceram meus ossos inferiores.
meus ossos doem demais.
meus fracassos emergiram diante ao céu azul estampado de felicidade e declarações de um pássaro que costumava me enjaular.
perdi tempo com várias coisas.
perdi tempo escrevendo alguns poemas, comendo pães, fumando cigarros, lavando pratos, enxugando pratos, guardando pratos, lamentando expectativas, lavando roupas, torcendo roupas, estendendo roupas, lendo revistas, lendo poemas, lendo textos —os quais eu não deveria ler.
fiz ligações, tentei chorar, guardei roupas, lavei privadas, espelhos, fumei mais cigarros, me irritei com sons altos, li mais poemas, reli o mesmo texto, gritei contra a parede e tentei mastigar o cabo de madeira da faca de cozinha que partiu quando percebi que não conseguiria me suicidar.
comprei mais cigarros no posto quando acabaram, sentei para fumar e observei toda miséria encapsulada nesse mundo — nos carros vermelhos e nos condomínios principalmente.
quase fui atropelado por um carro quando atravessei a rua, dessa vez não era vermelho; uma borboleta de cor amarela tentou me cegar, dei boa tarde para um cara que fumava um baseado e tinha um ótimo físico.
meus fracassos emergiam o tempo todo diante de todas as coisas e o sangue que persiste em vazar de minha garganta não me poupava.
comi arroz, alho, frango empanado o qual temperei e cozinhei em vez de fritar. assisti a jogos de campeonatos, senti vontade de apostar. varri, varri muito. tentei me convencer a me matar, fui interrompido por outra ligação.
abri uma carta antiga que persisto em guardar até hoje, que diz:
“afinal, você traz todo o sentido que eu preciso.”
a mudei de lugar em seguida, guardei em uma gaveta branca.
pensei em quebrar meus dentes lá de trás, conclui que era idiotice.
no fim, acabei contemplando o fim. não somente o fim, mas o olhar de uma criança para o fim.
justamente o fim no começo de tudo.
enxergo isso nos mínimos detalhes e nos grandes eventos dos dias, dos meses e dos anos. o início de fato está inevitavelmente associado ao fim. isso me adoece. no entanto, eles dividem o mesmo lugar, criando assim os recomeços.
não sou um homem de recomeços, por mais irônico que isso possa soar.
as vinte quatro horas me enjoam, os términos sempre foram decapitações expostas ao público, as demissões foram carregadas de rancor, ódio ou ingratidão, o natal me faz isolar de todos pois anuncia o fim do ano, janeiro sempre será o pior dos doze meses, nunca sei como começar um texto, nunca sei como encerrar um texto, me pergunto sempre o motivo de continuar escrevendo —
afinal me sinto superado em tudo, nos sorrisos, nas piadas, nos prazeres maternos, nas noites, no andar, no correr, nas visitas, nas pinturas, nas músicas, nas decorações, nos cantos da cidade, no ciclo social, nas frutas —
os projetos que se repetem são patéticos, as meninas que sorriem são vazias e persistem em me entregar o que já havia sido entregue.
não sou um homem de recomeços, mas
gostaria de ser um homem de começos.
me flagela e me capacita a experimentar um estado de miséria tão grande quando penso em todas as coisas que me neguei — ou foram negadas a mim.
sinto vontade de fazer novos amigos, viajar para outros lugares, ir pra praias e encarar as ondas do mar, fotografar vistas indecentes, fumar em parapeitos de hotéis, dormir em quartos diferentes, acender lampiões em noites atormentadas por mosquitos, jantar em restaurantes universitários, rir com outros estudantes, ler meus poemas em voz alta, reinventar o amor em diferentes cascas e fios de cabelo, segurar aranhas com a mão e as pousar em segurança em árvores, beber uísques, diversos, dirigir carros em rodovias, sair do estado e encontrar amigos distantes.
me neguei a ser o início de algo que brilhe, persisto em olhar para trás e lamentar a ida do que progressivamente a vida persistiu em me dar.
sendo assim, me resta o fim.
o fim emaranhado no próprio fim. onde as notas não ecoam uma última vez, mas apenas soam uma primeira, única e breve vez, onde as ondas elas não quebram, mas apenas se levantam e logo após apagam nossas memórias.
onde os sorrisos apenas são dentes presos em gengivas e os filmes não existem, os quadros estão todos em branco por nunca terem sido começados, mas assim mesmo já estão finalizados.
as mulheres não te dizem “eu te amo” e nem te dizem “eu te odeio”, apenas olham para seus olhos e permanecem lá, paradas.
o sexo já começa com os homens eretos mas que vivem apenas montados no outro e nunca gozam, nunca.
onde os cães não latem mais, mas também não morrem.
e as moedas de ouro, cobre ou prata se acumulam sem nenhum valor.
é o fim emaranhado no próprio fim.
onde os dias de todo mundo se assemelham muito com os meus dias.
todo dia parece ser o fim, mas persiste em ser um eterno — preso em si mesmo — fim.
meus ossos doem e
cuspo sangue já faz alguns dias. meus olhos queimaram hoje limpando o banheiro, minha garganta vive com um nó terrível e mesmo quando me rendo o ridículo ato com toda estupidez contida de chorar, ainda fico preso.
dentro de toda miséria que me acompanha, ainda existe a possibilidade de ser o inevitável acontecendo, de ser o que deveria realmente acontecer, o que consegue piorar absolutamente tudo.
li um texto que não deveria ler hoje
esbarrei com o óbvio mais previsível do que minha própria convicção anterior, mas que ainda sim me flagelou e arruinou a luz de sol que me restava em fim de tarde.
desafiei, talvez, o meu maior fracasso. depois de trinta minutos batendo o pé feito uma criança mimada, perdi o desafio, me calei e permaneci assim até receber uma ligação.
pensei nesta maior derrota, decidi então que fui superado e — senão já — serei esquecido também.
pensei então “ao menos nisso existe um fim”.
ao menos nisso existe um fim.
decidi então escrever esse texto
porque acredito que uma alma torturada é uma alma torturada e deve procurar funcionalidade em sua tortura, a não ser que melhore.
e eu não vou melhorar, não tão cedo.
ótimo texto, aliás. de verdade.