decidi encarar essa cidade hoje.
essa cidade iluminada, congestionada, pesada, inundada por lágrimas e risadas, tortas risadas, sons de sirenes, bicicletas na contra mão, agonia, pressa e aflição, tomada de um egoísmo tão único, justificado de acordo ao sentido dos olhares de todos os outros carros em minha frente, com a vontade implacável de viverem suas vidas que se repetem como um círculo plano todos os dias.
ela me encarou de volta.
a medida que meu próprio olhar estático e reto firmava o alvo nas luzes dos carros que viriam em minha direção, percebi o quão fixo meu corpo estava, o quão neutro meu rosto, feito de barba, pele, sobrancelhas e um lábio inferior ressecado e queimado, estava, decidi então que enquanto estivesse submerso na neblina comum, cinzenta e venenosa dessa cidade, nunca seria diferente de todos os outros.
foi um daqueles momentos que eu parei e pensei. apenas pensei e me permiti pensar por mais alguns minutos. não somente pensar, mas me perder nos pensamentos.
diante de todos esses pensamentos, acabei concluindo que: toda dor em algum momento se torna trivial. acaba acordando ao seu lado, esperando você terminar de escovar os dentes pra poder usar o banheiro ou até mesmo preparar café pra você. te acompanha pro trabalho, senta em seu colo e te aquece quando precisa, até mesmo sussurra palavras para utilizar em um texto.
encontrei dor em todas as coisas ao meu redor, nas tomadas apertadas, no paisagismo inútil do meu trabalho, na mediocridade das pessoas, na gentileza descompromissada, nos fios de cabelos ondulados de cor preta, nos incontáveis olhares que me fitam, nos passos adiantados de um ser apressado entorpecido por sua urgência constante, no pânico, no medo, no vazio, nas golas brancas, na lama em que meu pé, inevitavelmente, firmava em câmera lenta, em um sorriso de olhos apertados, nos piercings cravados em diferentes peles, no formato circular das barras superiores do metrô, em dois pássaros de barriga amarela que vieram visitar meu escritório, na sombra formada em um prédio ao meu lado por conta do pôr do sol, na cidade magoada de Salvador.
mas principalmente, nas nucas pálidas.
estive pensando nisso por dias.
as nucas pálidas —
da fúnebre apresentação de julho, seu brilho incandesceu
nos confins embriagados de minha memória, você se escondeu
o rubro te vestia e pra mim você sorria
com dentes tortos e lábios sangria
suas mãos foram lua, a escuridão iluminaram
as palavras foram enxofre, no inferno me torturaram
num breve momento, sua imagem emergiu
insistiu, tomou espaço em minha mente
persistemente, esteve quieta em minha frente
havia uma sombra em torno de si
mas um brilho em seus olhos
apenas lá, sob o crepúsculo da percepção
tentei te tocar, mas meus dedos sangraram
tentei te tocar em minhas lembranças, mas meus dedos sangraram
e subitamente, sua nuca pálida se tornou escarlate
se tornou minha obra de arte