desisti de colocar o símbolo de grau depois do número que se refere aos dias. não faz o menor sentido. eu não leio “sétimo da agosto” leio “sete de agosto”.
não bebi ontem. foi o primeiro dia em cinco dias que me mantive sóbrio. entretanto, na contramão, fui acarretado de trabalho e de estresses, que de certa forma é tão danoso e atraente quanto o álcool. existe alguma relação íntima entre a crueldade que me ronda e o meu prazer momentâneo. de forma que tudo que ameaça me machucar ou concretiza essa promessa de algum jeito ainda fale “eu te amo” em meu ouvido enquanto gira a faca no meu abdômen.
percebo que a medida que o ritmo maldito que a cidade, as demandas, a fumaça, as sirenes, as passarelas, as estações, as esquinas, os postos de gasolinas e as cantadas de pneu me impõe, me torno mais ganancioso. essa busca de ter dinheiro ou ganhar mais sempre, independente de como, quanto ou quando, pode ser também a reação de se abster de todos os outros anestésicos da euforia de meu vazio. como — por algumas semanas e quase um mês agora— eu recusei a dança que fazia com meu demônio interno há dois anos, acredito que isso ainda pode ser ele, me chamando novamente, porém, agora com outros passos.
às vezes sinto que sou bom demais para isso, para a ganância, não sou como vocês, ratos infelizes que correm numa esteira em direção ao fim do arco-íris, prontos para arrancar os órgãos internos do leprechaun e encher seus bolsos com as moedas do pote de ouro.
às vezes sinto que sou arruinado demais para isso, nunca conseguiria manter o foco em uma coisa só com o bruto intuito de enriquecer. sou um artista, ou pelo menos as pessoas me falam isso. sinto muito, não sou sentimental, sou afetuoso. de forma que sou vítima de meus próprios afetos, me deixo ser afetado por muita coisa, como no mundo deveria olhar apenas para frente?
pensei em abandonar o cinema, para sempre. flertei com a ideia por alguns instantes, hoje me sinto mais abraçado na criação dos textos e dos poemas, pensei em seguir esse caminho.
no entanto, o que eu faria? escreveria em uma revista a avaliação de algum bar podre de salvador que algum dia se tornaria gourmetizado e levaria algum nome que faria referência ao mar, a alguma cor, a alguma mulher, algum animal ou algum poeta local? — “boteco o marreco, bar das meninas, boteco caymmi ou boteco cor-de-si” (esse último foi o pior de todos).
depois de um tempo iria começar a escrever meus poemas e recitar eles em alguns lugares, se é que existem, nas universidades, nos mesmos botecos antes de serem gourmetizados, nos casamentos de pessoas desinteressantes e flácidas. teria que retirar as citações de sangue, teria que ser menos virtuoso do que já sou, teria que ser mais romântico, menos reclamão. abandonei a ideia.
“bar H. Paixão”, imagine.
queria eu ter um nome tão marcante quanto caymmi ou bukowski. pensei em abandonar o nome henrique também. consegui odiar até meu próprio nome.
abandonei a idéia tanto de abandonar o cinema e tanto de abandonar o meu nome. provavelmente apenas esteja revoltado com a obrigação de encarar ambos, tanto quanto o cinema e tanto quanto meu nome, em ambientes os quais eu não os permiti estarem.
deveria patentear o nome “henrique”, para nenhum filho da puta ousar colocar nas crianças feias que fizeram numa noite quente, numa transa decepcionante onde o macho gozou rápido e a fêmea nem terminou de soar a primeira nota de seu gemido. todos os outros arrogantes filhos da puta que já nasceram e cresceram com o nome seriam obrigados a retirar ou trocar por outro nome com h. hugo, herreira, higor, horácio, não é problema meu.
não conseguiria patentear o cinema, mas deveria ser tão grande quanto a ideia de fazer cinema. somente assim não ficaria revoltado com a obrigação de ter que ver ele em lugares os quais não deveria estar.
de qualquer forma, não vou desistir do cinema, não vou deixar de utilizar meu segundo nome, assim como vou ter que lidar com o fato de escrever dois roteiros para dois curtas que as disciplinas da faculdade me obrigaram e vou conhecer inúmeros outros falsos henriques. nada muda.
no entanto, gostei da ideia de me apresentar em algum lugar com meus poemas, despretensiosamente.
em casa, conversei com jean sobre a ideia. disse que seria legal, que eu deveria tentar, que até me assistiria se fosse o caso. lá, conversamos sobre trabalho, principalmente minha indignação de ter ficado até mais tarde ontem. me perguntei se não era um rato numa esteira também, porém um rato preguiçoso, ou seja, o pior de todos.
depois rimos de algumas piadas e eu parti. tinha que ir para a ilha de sangue — o subúrbio. no caminho, percebi alguns detalhes que apenas com a atenção ou a menlancolia necessária — coisas que sempre estão inerentes a mim de acordo ao pânico — se percebe.
os gritos dos selvagens, os uivos das sirenes, o som dos meus passos, as luzes do posto que deitam no asfalto, o som do meu cigarro queimando ao tragar a fumaça, o olhar desesperançoso da carne flácida e enrugada dos ratos nas esteiras. a progressão dos carros que seguem egoistamente de volta as suas garagens, e seus donos de volta as suas esposas, suas esposas de volta aos seus filhos, seus filhos de volta aos seus pais e seus pais de volta as suas amantes, e suas amantes de volta a suas respectivas solidões. o banner vermelho da lanchonete “coxinha do gago”; o qual me abateu mais forte do que todos os outros por me perguntar se não deveria ser “cocoxinha do gago”. seria um bom marketing.
lembrei de uma noite bêbado que jean me desafiou compor uma música em dez minutos e eu fiz uma canção no violão sobre a lanchonete “coxinha do gago” em quatro minutos.
percebi também meu corpo, que atravessava o ar com uma tranquilidade recém bem-vinda, a de estar completamente sozinho, e agora de fato, absolutamente sozinho. não havia nenhuma alma próximo de mim o suficiente para olhar em meus olhos. cada dia que passava, gostava mais ainda do fato de estar sozinho. chorava quando queria, ninguém me via. bebia quando podia, ninguém reclamava. fumava quando queria, ninguém se incomodava. sou um fantasma, um espírito, transparente a retina que capta não a carne, mas sim a alma.
quando estive a caminho da ilha de sangue, pedi para carregar a bolsa de uma mulher, beirando seus quarenta e voltando do trabalho, a qual aceitou. não fiz por gentileza, estava me incomodando a bolsa dela batendo no meu pescoço. mas uma ideia de educação pousou na minha mente. “apenas sorria, diga boa noite e pergunte, sem entregar em seu olhar de lunático que você planeja furtar todos os pertences dela, se você pode segurar a bolsa dela”. deu certo, não roubei nada e segurei a bolsa.
li “Mulheres” do Bukowksi o caminho inteiro. em casa, conversei com a minha mãe, casualmente, sem violência, impressionantemente como filho e mãe. aproveitei e comi, o que normalmente não faço em meu apartamento, depois dormi.
acordei, aproveitei e comi novamente, mas foi inútil. vomitei tudo depois, não faço ideia do motivo, acho que meu estômago perdeu o costume de receber comida, acabou se apegando a ideia de receber apenas álcool a noite e apenas café de manhã.
saí na rua, a ilha de sangue tinha acordado com névoa e silenciosa. reclamei um dia desses, provavelmente anteontem de dias ensolarados e calorentos. fico mal-humorado, estressado, suado e com pressa. quando faz frio, apenas deixo de ficar suado.
no ônibus, sentei e continuei lendo. desisti depois de perceber que era mais importante para o passageiro da frente escutar a música gospel dele no volume máximo enquanto acompanhava a letra cantando do que ler meu livro, não seria egoísta a esse nível. fui tomado de um nojo e ódio indescritível que me acompanhou até chegar no trabalho.
no metrô, finalmente percebi que não só eram ratos infelizes na esteira, mas eram ratos que levavam sua infelicidade a inutilidade.
todas as carnes falantes daquele vagão tinha algo a penar, todos teriam chorado em ao menos seis meses ou menos, teriam perdido algo, teriam sofrido algo, teriam terminado relacionamentos, teriam cortado o dedo enquanto fatiava cebolas ou algo do tipo.
mas, ao meu julgamento, nada disso teria importado. eles não reciclavam seu sofrimento, mas descartavam eles e deixavam um rastro de chorume logo abaixo deles, ou pior, conservava-os dentro de si, criando um lodo em suas almas que o impediam de ver a luz do mundo, sendo obrigados a se convencer que suas felicidades estão em coisas tão simples como:
o bar com nome de animal, poeta ou mulher, a coxinha do gago, a frequência que fazem sexo, a música que deixou de tocar no rádio, o pote de ouro no fim do arco íris, a violência já declarada contra o leprechaun, a falsa gentileza de um sórdido e arrogante jovem na casa dos vinte que pediu para segurar sua bolsa, o qual você jurou ser sincera; o que faziam seus antigos amores, o que fazem seus futuros amores, qual seria a cor dos olhos de seus filhos, se eles teriam ou não trancado corretamente seus portões, em que momento eles iriam sentar em sua viagem no metrô.
tudo isso era o que mais importava para eles, ou pior, era mais importante do que suas próprias dores. o que eu faço nos meus textos é exatamente o contrário, me pergunto se alguma alma naquele vagão faria algo parecido.
meu estômago revirou. senti vontade de vomitar. logo mais, uma mulher que estava sentada na minha frente se levantou. a que estava do meu lado olhou e ameaçou perguntar se eu iria sentar, respondi que não na hora.
pensei que ela provavelmente estaria tentando ser feliz se convencendo que vale a pena trabalhar tanto para sustentar suas crianças, que não está tão cansada assim e tendo certeza que consegue estudar para aquele concurso que irá mudar a vida dela.
no entanto, eu estava lá, olhando de canto e pensando no fundo da alma de cada um, inclusive na dela. quem precisava mais daquele assento? me convenci que ela, ao menos eu iria colocar esse momento em um texto.
o que ela faria com a dor dela? nada.