Capítulo I

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1 min readJan 20, 2023

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As asas de uma barata são as últimas coisas que se vão em seu corpo decomposto.

Por que é impossível impedir o voo da barata morta? O seu corpo, ou o que já foi algum dia, se deita sobre essa camada mórbida do ar e aproveita sua última viagem em luz. Continua cansado, continua um corpo cansado. Continua um corpo exausto. Um corpo raivoso. Um corpo ingrato.

Pode parecer tão simples para as formigas que retiram cada centímetro do corpo da barata, suas pernas, antenas, olhos, barriga. Pouco a pouco, elas devoram esse corpo miserável, mas ignoram as asas. Ignoram as asas que um dia foram sua arma, ignoram armas que atraíram a morte, ignoram a morte que a seduziram.

A asa permanece, até um dia sumir. E elas vão sumir. As asas sempre somem. Mas não parece ser atraente para ninguém, nem para o inferno, nem para o paraíso, nem para o purgatório. Essas asas não são julgadas por nada. Qualquer olho acima da barata esquece da beleza de suas asas, do pecado que elas carregam, das emoções, das suas lutas, das suas decepções. Não há julgamento para algo tão irrelevante.

A dor presente e constante é a única coisa que te lembra estar aqui a cada instante. Essa realidade é tão fina, tão fácil de ser perfurada e esquecida. Essa dor é um incômodo que me cansa e me frustra, me questiona e não me responde absolutamente nada. É tão incomum se sentir sozinho rodeado de tantas asas.

Escrito numa quinta-feira, às 21:22.

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