contestação do réu —
eu sou um homem razoável, saia do meu caso
sua cova, todo dia que passa, se torna mais funda
seu tempo passou e hoje você é apenas uma estátua
uma estátua de mentiras, de ego frágil, de um homem químico
a lembrança mais nítida do ódio como solução
e ai de mim, um dia olhar pra ti como um exemplo
pois mesmo perdido em um deserto cinza de apatia
mesmo sem chão para pisar, sem um caminho para trilhar
não me rendo a força bruta do ódio, ao veneno que o rejuvenesceu
a dor de acordar os dias com os olhos secos e em filtro sépia
o alívio falso de ir dormir desejando o mal ao ventre que sangrou
que você fez sangrar, que te fez sangrar
e ai de mim, um dia fazer mais línguas saltarem da boca
ai de mim, me ver sorrir em meio ao sofrimento apenas para
ter meu ego reestabelecido, meu espírito reerguido
como um vampiro de dor que não sossega a cada minuto
de todos meus amores, eu entreguei o amor
sou o reflexo de todos os olhos que encarei
mas por conta de suas unhas fundas e sujas
eu também sou o cheiro de carne fresca rasgada
eu também sou o portador de uma alma pesada
eu também sou um parasita que busca espaço
para viver em uma outra vida
mas não por muito tempo, eu serei mais
do que um dia você me ensinou a ser
réplica —
não há nada a temer e nem nada a há duvidar
me diga então, um homem que nunca se rendeu ao ato de
odiar
me mostre então, senão Jesus, o homem que amou ao próximo
sem titubear
e como pode você, uma extensão de minha maldade
um pelo do meu nariz esbranquiçado, um reflexo alucinógeno
em um banheiro desnorteado e escuro,
você, que nunca seria você, senão pelo meu sofrimento
pelo meu sofrer, pelo meu flagelo, ou pior, pelas minhas vítimas
você é um acorde triste que compôs meu interlúdio final, um si menor que
choraminga aos cantos em busca de uma solução
de um desvendar deste caso já premeditado
diferente de você, eu conseguiria terminar suas dúvidas
seus quase desesperos, suas nunca entregues lágrimas
suas pseudo mortes, os reviros e borbulhos em seu estômago
toda vez que você percebe que não tem controle sobre a realidade
eu tinha, eu era a minha realidade
e por mais que meu império não tenha durado muito
eu te entreguei uma lição valiosa sobre a vida, eu te formei homem
eu, de uma forma ou outra, fui o pai que você precisava
a surra que você tinha que tomar, o cuspe na cara que sua mãe te deu
e hoje eu digo, covarde, covarde mil vezes, por hesitar odiar quem nunca
nunca hesitaria te odiar, quem nunca, se você fosse alguém relevante —
como eu fui, como eu era — iria titubar em recitar um poema triste, nojento
odioso, vil, onde você seria pintado como o vilão, o vilão que você não tem
a coragem de ser
vilão esse que, de alguma forma, você já é, nem vilão, perdão
um personagem pífio, cômico, um alívio trágico, uma antiga ameaça
o “relaxe, ele não vai fazer nada”
eu sou o passado que te persegue, não o fantasma na parede
não a aranha doméstica
eu, eu sou
e você sabe, eu teria resolvido isso.
tréplica —
como posso então duvidar de mim mesmo? tudo está quebrado
por que você não pode esquecer? eu não esqueço tão fácil
todas as imagens vivem em mim e a dona aranha persiste em
cuidar delas como se fosse seus próprios filhotes
não sou um acorde triste, sou uma nota grave que chia
que chia no ouvido mais próximo de forma suave
com pedidos de desculpas, textos soberbos, palavras esquecidas
e pontas de sentimentos erroneamente esculpidos, pés de mármore
quebrados, rostos tão feios quanto minhas tosses
o pintor que não usa cores para deixar gráfico seus pensamentos
a falha do poeta em rimar e encantar, o escritor burro e senil que não sabe
mais o significado das palavras e repete para si mesmo: norte, morro
ontem e mais nunca
norte, morro, ontem e mais nunca. norte, morro, ontem e mais nunca.
bom, por que você não pode esquecer? eu não esqueço tão fácil, mas
eu tento. eu sempre tentei, sempre tentei.
não me rendo ao veneno que me rejuvenesce, sou jovem, sou amado
sou o futuro, próximo e esperançoso talvez
distante e mortífero, com certeza. mas sou o futuro, você é o passado
não me rendo ao veneno que me rejuvenesce, sou o passado também
mas de algo melhor, sou o pai de um filho mais paciente, sou um avô
de um neto mais amoroso. sou todos os erros que minha geração não
podem cometer. e como dizem os dicionários
o passado, se mantém no passado. que passou; decorrido, no pretérito.
e o presente, se mantém no agora. e existe ou acontece no momento em que se fala ou que está no tempo atual.
mantenho meu corpo o mínimo químico. longe dos venenos, mantenho minha pele naturalmente envelhecida. mesmo em uma estrada gélida, sozinho, no escuro e em devastidão comigo mesmo
morrerei íntegro, com medo, mas íntegro.