os vagões chacoalham a cada barra de ferro que atravessa
o horizonte no entanto permanece fixo em meu olhar
barras brancas, cumes esverdeados de pituaçu, o tráfego ordinário dessa cidade
barras brancas, as carnes enfeitadas que se amontoam em frente a entrada, os olhares e sorrisos desperdiçados por uma gentileza qualquer
meu coração bombeia um líquido preto já conhecido por minha carne nada enfeitada
os trens se separam, desviam o caminho e se distinguem entre ida e volta
nunca param de seguir seus devidos destinos
meu espírito se afoga nessa fantasia solitária e única, se envenena pela ideia de sentir o indevido
é o veneno que me rejuvenesce sendo injetado em minhas veias mais uma vez
os anjos de olhos negros que pregam as boas novas do reino
o grande diabo que rodeia os cantos de minha mente como um coiote em seu deserto
em seu deserto, sempre esteve aqui, apenas foi paciente o suficiente para aguardar o momento certo
apenas para encontrar minha carne vulnerável o suficiente
a minha derrota se torna o retrospecto do meu passado
apesar dos anos, meses e dias que envelheci décadas
apesar de minhas rugas cada dia mais aparentes e meus cada dia mais amarelos dentes
apesar de ter travado guerras contra todas as entidades que guardam o meu inferno próprio
a minha derrota reflete o desespero da minha jovialidade
e a criança em minha mente, que sofre com calafrios no estômago e nós na garganta
apenas repete as palavras embriagadas de angústia
a criança me disse então que a pele branca deveria ser separada da carne e estirada em um varal
disse também que a carne deveria ser rasgada dos ossos para que o esqueleto seja exposto em mural
persistiu me contando como seria necessário arrancar a cabeça e cravar uma última faca no coração para que assim não nasça novamente
me justificou dizendo que poderia finalmente consertar tudo, que iria voltar ao éden e ser o adão que a humanidade precisava
por um breve momento soluçou e gaguejou sílabas as quais recriavam uma violência antiga
pobre criança que presenciou os vidros espatifados em pisos tão gelados, me fez questão ao recordar a sensação dos cacos perfurando meus dedos
seus pequenos olhos infantis se encheram d’água quando descreveu a maneira que deveria encerrar aquela vida
sua inocência sanguinária me convenceu e batizou o meu espírito em ódio
ele permanecia de pé em frente a uma cachoeira vermelha, presa em uma paisagem terrível: céus negros, espinhos que cresciam e não paravam mais, rostos escondidos entre as sombras
cobras que sussurravam os piores pesadelos desse bebê, frases sibilantes que o perseguiam em seu sono
ela permanecia lá paralisada e me dizia “pense sobre os bons tempos e nunca olhe pra trás, nunca olhe pra trás”
ao voltar para o horizonte fixo, as barras brancas se tornaram escarlate, os trens se chocaram, as carnes antes enfeitadas agora não passavam de um amontoado de entranhas podres, os cumes estavam em chamas e o incêndio era tão perverso que desfazia os músculos da boca de todos, os impedindo de sorrir uma última vez
enquanto meu corpo derretia diante o pranto fulgoroso e flamejante de um bebê em agonia
minha mente torta me pôs no mesmo lugar desse momento, era um déjà vu
todas aqueles corpos que agora se desfaziam em tormento em minha frente, já haviam morrido
as estruturas e as bases desse local, desmoronaram anteriormente, corpos se perdiam no solo
os anjos de olhos negros que um dia tentariam me consolar com poemas esperançosos, desistiram e agora só me encaravam com um olhar de pena
o grande diabo uivava enquanto permanecia no ponto mais alto dos cumes em chama, não era uma celebração, mas sim um lamento
ao olhar para minhas próprias mãos e não enxergar nada além de um sangue velho que refletia os anos pares, o meu último suspiro se esforçou para que me lograsse a razão mais amarga que minha vida presenciou
“eu estava certo” foram minhas últimas palavras
uma calmaria pousou então e cobriu toda a imagem, de alguma forma me convencia que toda a dor do momento acabou
as guerras, o sangue derramado, as lágrimas quentes, os perdões que se repetiam, as amarguras que pintaram esse quadro, tudo estava acabado
as paredes desmoronavam, o chão se abria ao meio, os céus se fecharam
meu corpo parou em seu próprio eixo, sem certeza nenhuma de sua sustentação
o meu último olhar flagrou o letreiro do metrô, permanecia intacto e costumava um dia mostrar as horas
agora, entre piscadas descoodernadas, escrevia, com letras rubras, tomadas por um brilho fosco, desenhadas por uma fonte digital em um painel elétrico
“você deveria estar morta”
apagava e repetia, sendo a única coisa que clareava o resto de minha consciência
“você deveria estar morta”
apagava e repetia
“você deveria estar morta”
apagava e repetia.