vinte e três horas de um sábado e eu não me senti nem um pouco aqui. perguntei a mim mesmo:
cadê seu garoto de ouro, onde está seu toque de ouro?
recortando alguns trechos líricos de músicas, tomado por uma melancolia instantânea, de fácil cozimento, pude concluir após enxergar borbulhar em meu fogão: não sobrou o que salvar em meu corpo.
poderia ser um príncipe, se ao menos conseguisse fazer a barba ou tirasse a poeira de cima do formidável.
os anos superaram a ideia de um homem invencível e inabalável — e se abalável, genial, e se vencível, inevitável.
os meses foram como brasa em agonia pluvial, arrastando a última de sua quentura pelo esgoto.
o tempo, e seu motor revolto e implacável, foi como anjos no julgamento final, afirmando que era apenas o início do fim.
me servi um drink de vodka e maracujá, com limões espremidos. bem forte, era o segundo da noite.
acendi um cigarro e me pus a pensar diante a toda covardia, nostalgia, aceitação pacífica e passiva, redenção ou medo.
procurei inspiração nesse olhar cadavérico que em toda sua capacidade consegue estraçalhar o reflexo no espelho, porém apenas achei um peso já conhecido.
estive em pequenas salas falsamente iluminadas as quais me violentaram com suposições tão cruéis que me rasgaram do espaço-tempo.
não estava ali e aquilo não estava acontecendo.
por mais que conseguisse enxergar, visualizar todos os passos e movimentos de membros presos a corpos em consciência, sustentados por ossos e crentes dignos de algum espírito.
ainda presenciava aquelas pessoas, irritantes, iguais e previsíveis, assim como eu.
ainda sentia um gelo em minha barriga de vez em quando, pude ter certeza em alguns momentos que seria o meu fim.
mas, não seria, pois não estava ali, assim como nada daquilo estava acontecendo.
após isso, senti minha carne presa na linha de meu corpo chacoalhar enquanto me movia de um ponto ao outro.
encarei olhares, doei alguns sorrisos e parte de minha atenção barata, outros desabafos, almoços e afagos em cães.
logo após, me retirei.
pude encontrar o mesmo peso após sentir o sopro que anuncia a primavera — tão conhecido sopro— que arrebentava meus cílios por conta da velocidade.
ao lamentar em silêncio com meu pescoço cedendo na mesma direção do pôr do sol, também encontrei o mesmo tipo de peso, em todo laranja estampado no céu naquele momento.
as minhas velhas companheiras solitárias que iluminam essa cidade me deram boas vindas novamente, de forma completamente irônica.
os cumes de areia branca que chamam atenção de turistas ao redor de todo o estado também estavam lá, foram mais bondosos dessa vez.
astrologia chinesa me entristeceria em sequência, uma espécie de refluxo se repetiria de forma perversa, resultado de uma má alimentação e irritação por álcool.
escondido e seguro, entre quatro paredes, me parei a refletir em seu sorriso.
dentes imperfeitamente alinhados, de uma força tão grande que me faria acreditar na vida novamente.
de todos os detalhes de sua pele, poucos me impediriam de me tornar um homem religioso e adorar o amor uma última vez.
isso seria um papel perfeito para um homenzinho de antigamente. se ao menos ele estivesse aqui, ou se você estivesse lá.
abandonei acordes e sequências, apaguei poemas e textos que comprovavam outros tempos.
em toda glória de um antigo passado fluorescente, pude ser seu escritor preferido ou seu arrependimento mais divertido.
hoje, sou um borrão nas memórias de alguma mente, seja lá qual for, se for.
procurei inspiração nesse olhar cadavérico, nesses pelos de enfeite em meu rosto, nos dedos calejados ou nos lábios queimados.
não consegui me encarar por muito tempo.
era vinte e três horas de um sábado, então me perguntei:
cadê seu garoto de ouro, onde está seu toque de ouro?