moi aussi

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3 min readOct 10, 2023

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Persisto em enfiar agulhas em minha pele, persisto em jogar areia em meus olhos, persisto em cravar facas em meu coração. Como um anjo negro que persiste em voar sendo consumido por um tumor a cada nuvem, que tem ciência que irá cair da mesma forma que levantou, mas que insiste em ser comido por essa dor apenas para uma outra vez sentir entre o ar um único amor.

Todas as minhas lágrimas caem sobre uma névoa e uma terra cinza; todo o meu sangue caí sob o sol apagado, o céu claro demais para ser admirado. Meu espírito vaga por um mundo que não se declara estar aqui. A cada vez que me jogo nesse rio invisível e prendo minha respiração para simular uma morte lenta e dolorosa por um afogamento, penso o quanto sinto falta do deserto e do coiote que o rondava eternamente. Cores, eles haviam; vivos, estavam. Um uivado de uma tela branca assusta muito mais que os dentes da morte.

Mas ainda escuto esse cavalgar perturbador e eterno, um trote distante, facilmente confundível com trovões, de cavalos fantasmas que vagam atrás de mim, mas nunca perto o suficiente para afirmarem que são reais. Eles relincham a cada choro e suspiro meu, eles relincham. Mas nunca os vi. Sempre estão longe o suficiente para no outro dia seguinte afirmar que tenha sido apenas um pesadelo horrível.

Por seis meses, dezesseis dias, vinte e três horas, quarenta três minutos e vinte segundos , vago por esse plano de tormento irreal. E seria completamente injusto afirmar que sempre tem sido assim, aqui presenciei tempestades tão fortes que me conceberam uma noção de realidade acima do que conhecia, presenciei terremotos que abriram todo o chão abaixo de mim ao meio e me apresentou o inferno, ou furacões que me suspenderam a alturas inimagináveis que me ejetaram até o paraíso apenas para ver o ácido alado que corroía minha garganta quando pensava em continuar aqui, as nuvens que me amordaçaram e me impediram de gritar socorro, e me deram certeza que não há nenhum deus olhando por mim.

Sou um fantasma que vaga procurando pelo o meu antigo espectro, que ria comigo e queimava meu peito como uma estrela. Quando chega a noite, é completa escuridão, breu mórbido que não me entrega a benção que é olhar para cima e contemplar o universo, pois estou sozinho aqui. Mas nem sempre foi assim, ao lado de meu espectro pude enxergar Andrômeda a meu lado, voar entre nebulosas, enxergar a lua cheia de estrelas ou o sol em sua magnitude finita. E quando pulava no rio, meu corpo se preenchia de água, anjos de olhos vermelhos sobrevoavam o céu ardente e não havia nada a temer e nem a duvidar.

Meu corpo era belo e a arte era viva, em um mundo onde qualquer tela era uma pintura, qualquer canto de pássaro uma orquestra, ou qualquer declaração um poema de amor; hoje, meu corpo é morto, e a lírica é minha lápide, a qual me enterra todas as vezes que procuro chorar por me provar que ainda estou aqui. Enxerguei mais cores do que sabia que um dia existia, hoje enxergo um mundo preto e branco com um brilho saturado, que engana aos inocentes que acreditam no céu.

Persisto em enfiar agulhas em minha pele, persisto jogar areia em meus olhos e persisto em cravar facas em meu coração, para me provar que estou vivo, que ainda estou aqui.

Numa noite, após finalmente conseguir pegar no sono com ajudas de pílulas vermelhas, após finalmente os trotes infernais pararem por um segundo, após meu sangue ter estancado e o uivo dessa tela branca sossegar por tempo limitado, sonhei com meu espectro, que dizia, em um vestido branco, cabelo preto fosco longo, numa próxima vida em Bordeaux, embelezando o horizonte na frente do pôr de sol, parada na Ponte de Pierre:

Tu me manques.

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