O fim

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3 min readMay 26, 2023

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Os insetos em minha mesa que insistem em procurar açúcar ou rastejam usando como uma travessia necessário se batem entre os papéis molhados e as cinzas de outros queimados.

Ontem, tive a sorte de voltar sentado. Namorei as luzes a minha esquerda, com o rosto colado na janela e a testa inclinada. Em sua maioria, vermelhas; tomavam conta do ambiente urbano, semáforos, carros parados, outdoors. E a vegetação de alguma forma insistia em enfiar memórias de travessias, as quais eu insistia em esquecer. Por mais sorte ainda, consegui adormecer enquanto ouvia uma sequência de músicas que entre uma e outra existia uma interferência incomoda a qual insistia também em me acordar.

Em um certo determinado momento, sonhei, e foi o suficiente para me despertar de vez. O frio do 1611, a vegetação, o sonho, as luzes, a interferência, tudo foi o suficiente para lembrar de algo específico: era uma das poucas vezes que não gostaria de estar sentado no lado da janela. Então, não só esses elementos triviais transformados em símbolos consistiam em me trazer dor, mas também a morbidez do ambiente elevada pelo meu espírito, a falta de surpresa para com tudo ao meu redor.

O menino inocente que fazia xixi sem esconder sua genital não foi o suficiente para me despertar do transe, a forma grotesca que um homem formado lambia seus lábios ao olhar para uma mulher andando não foi o suficiente também. A buzina da van de transporte em um único estalo, contínua, na intenção de me informar que ele poderia muito bem ter me matado, a qual meu fone fez o favor de abafar metade, não tirou a sequência de minha mente que continuava dizendo “é culpa sua”.

Os detalhes da vida de todos ao meu redor não passaram despercebidos por minha retina, o homem alto que voltava do trabalho e era obrigado a recarregar seu cartão na volta, mas que de alguma forma mostrava uma satisfação invejável em seu rosto, o feirante que comia desesperadamente um saquinho de amendoins e o fato que minha mente demorou a associar fome como uma necessidade básica, o bar meio alaranjado da esquina que esquentava o estômago só de ver, dessa vez vazio. Todas as pessoas no ponto para a suburbana, os homens, mulheres e crianças.

Minha mão trêmula, por algum motivo, não sei se pelo frio do 1611 que a minha jaqueta não estava suportando e ao sair permaneceu cravado no meu corpo, não sei se por ter percebido nesse momento que estava sozinho, não sei se pela constante frase que meu inconsciente adorava repetir em competição ao meu consciente que me convencia que não, não iria acontecer, mas minha mão trêmula continuava buscando calor. Deixei as mangas de couro sintético abaixar até as palmas e agarrei-as. Não era esse calor que ela procurava.

Os olhares ao meu rosto consistiam em se perguntar o motivo das lágrimas acumuladas em meus olhos. Me questionei se estava vivo por um instante, passei a me responder que não; era apenas um corpo que insistia em se arrastar pelas travessias necessárias. Um inseto que a procura de açúcar, se batia entre os papéis molhados e outros queimados, mas nunca achava o que queria.

Minha mente encerrou aquele momento com uma concordância: não iria acontecer, nada. O resto de esperança em meu corpo ao passar das horas se foi, e ao acordar pela manhã, se foi a possibilidade dele voltar. Percebi que estou vivendo uma eterna interferência entre músicas, apenas o que restavam eram líricas buscadas em memórias sem nenhuma melodia. E por minha mente, de uma forma muito dolorosa e apática, um amargo que nunca havia sentido na vida, um ambiente difuso me respondeu que era o fim da minha história.

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