o dia passou, o sol mesmo quente, continua em seu ritual de despedida, o mesmo que assistimos ontem, o mesmo que vamos ver amanhã.
após repetir a mesma queda nas cervejas por sete vezes seguida, você surge no posto em que estava sozinho, se senta e passa a conversar comigo.
dessa vez, não há mais música no ambiente, funcionários que realizam seu trabalho de forma robótica ou mulheres em vestidos com olhares grudentos e ameaçadores.
apenas você, sua fala completamente desinteressante, seus risos falsamente voluntários, que servem para quebrar o gelo de meu silêncio bêbado, os quais poderia ter certeza que serviriam apenas para atender sua intenção de me agradar, seu cabelo vermelho curto e desbotado, seus olhos verdes acinzentados feito lobos imaturos e solitários, seus dentes tortos e maltratados e a atenção específica que persistiu em entregar todos esses últimos dias.
de alguma forma, nas palavras tão cotidianas, inocentes, metálicas, realistas, genuínas, autênticas, começo a encontrar fragmentos de uma declaração, e pouco a pouco enxergo o real motivo de toda aquela interação.
me exausto, finalmente, por fim, me entrego. minha língua que esteve quieta, passa a se mover diante as linhas vazias do diálogo que você mesmo escreveu.
logo após, seu marido chega, pilotando uma moto e utilizando um capacete, mal consigo ver seus traços pessoais, apenas enxergo suas mãos que grudam no guidão. mesmo assim, sinto que ele é a figura mais humana que passeou na linha reta de minha retina fixa.
saio cambaleando entre a avenida e a calçada, carros que voam ao meu lado ameaçam tirar minha vida e as pessoas no outro observam aquilo com todo tipo de sentimento incluso: desprezo, nojo, pena, admiração, pânico, terror, empatia.
após atravessar as duas ruas que determinam o sentido, tanto de uma cidade já conhecida e tanto a de um destino cotidiano, subo no ônibus e me sento na cadeira da frente, ocupando o lugar de algum idoso.
as pessoas que entram esbarram em minha perna, algumas pedem desculpas, outras apenas ignoram meu corpo cansado e bêbado estirado naquele assento.
meu olhar permanece fixo no horizonte: um plano apresentado pelo vidro temperado que serve de orientação para o motorista, e lá continha tudo, os carros, o mar, a pista, as pessoas tão pequenas como nunca, escancaradas ao ridículo. me rendo ao tédio e acabo dormindo.
após acordar, desço, outros rostos se cruzam diante ao meu, flácidos, comuns, indiferentes, apáticos, neutralizados, com exceção de um, um rosto angelical que quase consegue me convencer a me emocionar.
a maneira que os traços se formavam diante a carne presa ao crânio me lembrava um antigo amor, sendo assim um retrospecto do passado em pele e osso, vivo, em minha frente.
persistia lá, com seus olhos atentos a suas obrigações finais, apenas desviando para flagrar os meus que não desgrudaram de seu rosto até agora.
me assombro, mas novamente, começo a me questionar sobre a ideia de se emocionar com este rosto, passo a ter tudo ali em um só instante: a vontade de chorar, o instinto de escrever um poema, o enfraquecimento nas pernas que me fariam deitar numa cama e esperar beijos, afagos, cheiros, carinhos com o nariz, o refluxo que voltaria mais tarde, a súbita responsabilidade de assumir um filho, o destino careta que me obrigaria a parar de beber, os exercícios diários, a dor de sofrer por uma paixão, o pranto de um recém jovem de coração partido, o cão que há pouco tempo teria perdido seu lar definitivamente, o solo que estava mais duro que nunca, a barraquinha de cachorro quente com seu rubro brilhante e toda sua sacanagem de vender refrigerantes pequenos por quatro reais, os prédios da costa azul que me lembrariam uma área específica de alguma cidade, o falho ato de perguntar onde estaria você, a irresistível proposta de escrever algo o qual você seria uma personagem novamente, uma lágrima que escorreria de meu olho sem emoção alguma, o ridículo que persiste a acompanhar minha pele, minha lírica, minhas críticas, minhas rimas, minhas tintas, minha vida.
quase me emociono, no entanto, desisto da ideia, sigo meu caminho. penso como seria bom tomar uma oitava cerveja agora.