sozinho

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4 min readAug 20, 2024

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eu cheguei em casa e percebi que os cômodos estavam mais vazios do que o costume. quando pude entender, era tarde demais.

esperei até as uma da manhã e decidi então sair para comprar cigarros, em um posto a dois quilômetros de distância. coloquei meu casaco verde escuro e pichado, carreguei minhas chaves e meu isqueiro e saí.

ao andar durante a rua de madrugada, percebi que meu corpo não atravessava mais o vento com a mesma facilidade que antes. agora era um amontoado de carne com uma espécie de alma pesada presa dentro de si que amarrava tudo aquilo junto.

o vento da orla me machucava, assobiava desafinado em algum sustenido com sétima em meu ouvido. meu corpo pesado não atravessava o ar e eu me rastejava entre as folhas molhadas, a lama, os ratos que corriam para seus esconderijos ao me ver, os morcegos que passavam voando baixo em minha frente, as luzes que alternavam entre amarelo e vermelho acompanhada de bipes agudos, outras luzes que adicionavam o verde a essa sequência, entregando uma rotina ordinária para todos os outros humanos na terra.

meu coração pesou.

continuei enfrentando aquela selva de pedra. percebi quão fantasma a cidade de salvador pode ser quando você não está no rio vermelho ou na barra. os prédios altos, os carros em toda velocidade cortando o seu destino pela frente, os cumes esverdeados que contrastavam com o asfalto preto seguido de linhas amarelas, ou eram brancas.

andei mais um pouco, pude enxergar uma sombra na loja tok&stok. percebi que podia estar acenando para mim. depois, percebi que seguia meus passos. comecei a encarar ela e senti que ela me encarava de novo. aquele letreiro verde, banhando em neon não conseguia desprender minha atenção da sombra. ela de alguma forma me chamava para dançar.

pude ver corpos de diferentes cores em minha visão embaçada ao me esforçar andando. quando prestava atenção, percebia que era apenas uma lixeira ou um cone.

cheguei ao posto, tive que trocar dinheiro com alguns rapazes que estavam por lá, não estavam aceitando pagamento via pix. não houve indignação da minha parte, estava cansado. pude continuar quando consegui o dinheiro físico.

fumei meu cigarro e percebi que não queria tanto quanto eu pensei. minha vontade de fumar era muito mais uma espécie de passatempo por não ter nada melhor para fazer. voltei a caminhar novamente.

dessa vez, flagrei olhares. os seguranças dos locais onde a elite dessa cidade frequentava fingiam não me encarar. quando cruzava os olhos deles, apenas desviavam como se nada tivesse acontecido. pensei então como minha aparência poderia estar: cabelo grande, barba mal feita, camisa do esporte clube vitória, uma jaqueta verde escuro e uma short de praia verde estampado. poderia ser pior, pensei. mas ainda sim fui tomado por um desgosto e um autodesprezo tão grande que entendi a falta de motivação deles de continuarem a me encarar.

uma ambulância passou voando ao meu lado, fez algumas folhas vermelhas voarem em minha frente.

alguém está morrendo.

pensei. alguém estava morrendo naquele momento. até que a mesma ambulância faz o retorno e passa ao meu outro lado, no outro sentido, com a velocidade reduzida. continuei pensando que alguém estava morrendo no fim das contas.

ao andar naquele solo, sentindo o vento frio que dita o tom na orla, olhando para as pichações, prédios, folhas, ratos, a fumaça do meu cigarro, escutando o som do balançar de minha chave e os meus passos cravando cada vez mais esse solo com mais cansaço, me senti triste. tragicamente triste.

depois de tanto ver sorrisos tão vermelhos que queimam em brasa-sangue. olhos furtivos que roubaram parte de mim ao fitar meu corpo e meu rosto. dentes cravados e presos em gengivas ordinárias e formosas justamente por serem ordinárias. ondas de fios de cabelo que formavam um universo inteiro ao balançar diante o vento. ao ver mãos de diferentes larguras, espessuras, distâncias. ao ver cinturas que curvavam logo na esquina do arrependimento. ao ter vivido tantas agonias e aproveitado tantas derrotas gloriosas. ao ter, você, seu corpo, preso em minhas mãos, de maneira que sua pele branca colava na palma de minha mão, que também era branca, jurando que nunca desgrudaria. ao ter rasgado seu ventre com uma lágrima de sangue tão perversa que duraria pelo resto de nossa juventude. ao ter atravessados ruas feito um cavalo desgovernado, livre e rebelde. ao ter bradado palavras contra o vento esperando que atingissem o útero que me gerou. ao ter perdido a morte de meu tio. ao ter certeza que perderia a dos meus avós. ao sentir falta do olhar impassível de minha irmã. ao ter pousado minha mão na cabeça do meu gato, dos meus dois gatos, e do meu cachorro, que me aguarda até hoje voltar para casa. ao ter espantado aquela mosca que pousou em mim e eu não percebi.

pude apenas sentir tristeza e a infame dor de estar sozinho.

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