você já cheirou tomando quente?

h
3 min readJan 9, 2025

--

as coisas se movem de forma diferente aqui no subúrbio ferroviário.

ontem eu fui na praça logo acima para correr, fiz os cinco quilômetros diários dando voltas. fiz amizade com uma criança que me acompanhava durante as voltas. toda vez que nos encontrávamos, ela dizia:

“tio, você tá cansado? eu tô cansado.”

logo depois voltava a pedalar com toda vitalidade que apenas uma criança tinha.

nessa mesma praça, havia galego e júnior. um vendia sonhos e cheirava pó nas horas vagas, o outro pedia alimentos nos mercados para vender mais barato nas favelas e assim conseguir comprar crack. ambos protagonizaram uma cena no dia anterior.

galego havia surgido do absoluto nada enquanto júnior o acompanhava. ele gritava:

“eu sou GALEGO, porra.”

júnior estava estressado e como alguém que havia desistido da conversa, apenas olhava para galego e os seus dentes quebrados.

“O CARA VAI ME MATAR POR VINTE REAIS?”

“não sei. você sabe como que a porra é.”

“EU SOU GALEGO, PORRA. EU JA SUBI TUDO AÍ. MADEIRITE, VALÉRIA, COCISA, COUTOS…”

“porra, galego, você se exalta demais”.

no entanto, ambos agora estavam quietos e tudo parecia bem. essa era uma das minhas últimas voltas. quando retornei para o mesmo ponto, ouvi a mesma frase acompanhada dos dentes quebrados:

“EU SOU GALEGO, PORRA.”

terminei as minhas voltas. pedi um cigarro para o pai da criança que havia feito amizade e logo depois me sentei com van, que havia chegado e dichavava a maconha com suas unhas. júnior se aproximou também.

quando eu cheguei, ambos conversavam:

“você já cheirou tomando quente?”

“não, nunca. o que tem demais com cheirar tomando quente?”

“corta a lombra, pô. sério que você nunca cheirou tomando quente?”

“se eu tô te falando, vei. corta a lombra do que?

“da quente, porra. você já cheirou tomando quente?”

ele perguntou para mim.

“acho que não. mas corta mesmo.”

“foi os cara daí que me ensinou, bob, elias…”

júnior então diz:

“porra, cadê esse cara, vei? bob sumiu, nunca mais vi elias.”

“bob tá trabalhando lá em minas gerais.”

van responde e eu complemento:

“elias morreu. se perdeu no crack.”

“acho que a gente vai precisar de mais uma seda.”

finalmente van acha mais uma seda amassada em um dos seus bolsos, ele bola o baseado que tinha começado no início dessa conversa e acende. nós três fumamos e logo depois eu vou para casa.

“apareça amanhã, você é família, cê tá ligado.”

eu desço a rua principal e logo antes da padaria que ilumina a calçada, atravesso para o lado da feira para pedir um cigarro para um cara que parece pior que eu. ele nega e eu concluo: ele está pior que eu.

volto para casa em direção a oscar marback e vejo uma figura antiga. um rapaz que ouvia uns conselhos meus na época que era uma criança e fazia parte da igreja. ele agora estava crescido, forte e com um black power bonito. parece que voltava do trabalho ou da faculdade. ele havia ouvido meus conselhos.

olhei para ele até sair da linha do meu horizonte. me perdi nesse único instante e na ironia de todo o caso.

ele havia ouvido os meus conselhos.

cheguei em casa e o meu cachorro me recepcionou com uma carteira de marlboro na boca. havia pedaços da carteira por todo lado.

mas lá estava ele, balançando seu rabo e me chamando para brincar com a carteira de marlboro.

as coisas se movem de forma diferente aqui no subúrbio ferroviário.

aposto que o pôr do sol na praia da barra deve ser bem diferente do que por aqui e por agora.

--

--

h
h

No responses yet