Voz

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3 min readJul 31, 2023

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ainda é difícil entender o que aconteceu
essa mente ardente e esse corpo de fogo
foi substituído por um vazio enorme
por um mar calmo e negro

ainda é difícil entender o que aconteceu
de inúmeras lágrimas roladas
pelo meu rosto e pelo facial
foram trocadas por inexpressão e frieza

ainda é muito difícil entender o que aconteceu
a dor nos ossos e o desespero de não ter
não amar, não viver, não beijar, não abraçar
foi trocada por uma tristeza apática

mas tão humana

ainda é muito difícil entender o que aconteceu
essas vívidas memórias fotográficas
em minha mente, aos poucos se tornam
devaneios e cheiros que não reconheço mais

devaneios e cheiros que eu gostaria de lembrar
fotos opacas e sépia que descolaram
de nosso álbum, de nosso quadro
névoa ácida que corroeu o meu museu

que está vazio e sujo

ainda é muito difícil aceitar o que aconteceu
entender que não existe mais dias quentes
pensar em como me tornei uma letra tão rápido
e que de alguma forma, morri de forma lenta

mas me resta alguma opção?
além de deitar nesse caixão
e rolar pra lá e pra cá
como costumava fazer contigo?

não me resta nenhuma opção
além de mergulhar nesse mar negro e calmo
buscando algum resquício de vida
mas aceitando que irei me afogar em instantes

não me resta nenhuma opção
além de entrar nesse museu vazio e sujo
com uma lanterna falha em mãos
e olhar para aquela sala escura

não me resta nenhuma opção
além de sentar nesse vazio
nesse quadro em branco
e aos poucos me tornar parte dele

de tentativas falhas de recriar seus músculos
de tentativas falhas de te ter novamente
se tornaram duras lembranças da descrença
do rosto incrédulo, estátua de pedra e gelo

e as facas pontiagudas que foram enfiadas
por sua língua e pelo seu corpo magro
em minha carne, olhos e ossos
se tornaram parte de mim

de tamanha forma que todos os dias
pela motivação de garantir que estão bem fixas
eu enfio elas cada vez mais fundo
e limpo o sangue que escorre com suspiros

mas faço isso com tanto amor, o resto que me sobrou

estão essas facas tão fundas enfiadas
que alcançaram ao inalcançável
as profundezas do imaculado
da mãe de Cristo, virgem Maria

danificaram as estatuetas de santos
derrubou a pedra da minha igreja
e crucificou Pedro mais uma vez
todos eles sangram comigo

enquanto um coiote passeia
por esse deserto frio e sombrio
que uiva, assim como o vento
procurando a quem rasgar

porém, passa fome, morre de fome
de forma que não existe vítima
nem culpado, nem carne para se comer
nem órgãos para se abster

não resta mais nada deste cadáver
e é impossível se alimentar de fantasmas
impossível de se alimentar de estrelas
e de nebulosas avermelhadas

é fato apenas que, os ossos
revestidos por névoa e fumaça
sem trincar nem um pouco
apenas repetem esse mesmo movimento

o dia inteiro, de tocar as mesmas músicas
no violão, o dia inteiro

independente do meu esforço
independente de quanto eu queira
desaparece aos poucos o seu sorriso
de minha mente

independente de quanto eu não queira
sou surpreendido por alguma lembrança
que não lembrava de lembrar
no meu dia a dia

independente das provas físicas
algo aqui dentro me convence
que o que aconteceu não foi real
que não aconteceu, que não morreu

pois para morrer, precisaria estar vivo um dia

o atordoamento geral
e a letargia de meus membros
colaboram diretamente para esquecer
o formato de seus dentes

o choque do amanhecer
e o baque do anoitecer
sustentam a obrigação de não registrar
o cheiro de seu cabelo

o desespero dos olhos estáticos de vidro
e os lábios coitados secos e pretos
rasgam qualquer fotografia que um dia
me lembraram de sua língua

ou os meus dedos machucados e calejados
ressecados e de vez em quando hidratados
conseguiram fazer a proeza de
dificultar meu acesso ao seu quarto

e meus beijos desperdiçados ao vento
se tornaram barreiras impossíveis de se mover
quando se trata sobre me impedir
de voltar no tempo e olhar em seus olhos novamente

minha mente se torna um cemitério de quentes lembranças mal interpretadas, enrijecidas e gélidas pelo momento e pelo inverno

e por alguma sorte minha, eu ainda escuto sua voz

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